A capitoa e a patativa dos canaviais

Quando Portugal descobriu o Brasil, em 1500, o mundo era menos doce, pois o açúcar era artigo de luxo. Sua produção era pouca, o preço caro, e apenas os nobres e o alto clero tinham o privilégio de saborearem os doces e adoçarem o café e o chá com o açúcar proveniente da cana. O resto da população precisava se contentar com o mel, isso quando o encontravam.

Após descobrirem o Brasil os portugueses ficaram decepcionados, já que não apresentava ouro e pedras preciosas de forma tão abundante quanto os países vizinhos explorados pelos espanhóis. O que o Brasil tinha de riqueza era terra propícia para a agricultura. Sabedor da demanda do mercado por açúcar, Portugal, que já cultivava cana nas ilhas Canárias, resolveu implantar a cultura em nosso País. Iniciou o cultivo na capitania de São Vicente sob o comando de Martin Afonso de Souza, por volta de 1530.

Mas foi na capitania de Pernambuco que a lavoura canavieira se expandiu e passou a ser a primeira atividade econômica do Brasil. Em 1535, Duarte Coelho se instalou na Capitania e se tornou o primeiro donatário, fundou a cidade de Olinda e tinha a missão de difundir a cultura canavieira pela região. O plano estava dando certo, no entanto, em 1550, Duarte Coelho, acatando uma solicitação do rei, voltou para Portugal com seus dois filhos e deixou em Pernambuco sua esposa, dona Brites de Albuquerque, para tocar os negócios da família, administrar a Capitania e expandir a atividade canavieira. Mesmo distante da Corte, em um mundo estranho, cheio de perigos e dominado pela figura masculina, dona Brites não esmoreceu e sua gestão superou todas as expectavivas: negociou com os indios, abriu novos engenhos, ampliou área de cultivo, incrementou a comercialização do açúcar, ampliou as divisas da Colônia e o faturamento da família, bancando os estudos dos filhos em Portugal.

Duarte Coelho morreu em Portugal em 1554, dona Brites permaneceu em Pernambuco e morreu em 1584. Era chamada de Capitoa e considerada a mãe de Pernambuco. Sua gestão foi decisiva para que já no final do século XVI nosso País se tornasse o maior produtor e exportador de açúcar do mundo. Assim, o Brasil, Pernambuco e dona Brites deixaram o mundo mais doce. Com maior produção, os preços se tornaram mais acessíveis, possibilitando a socialização do açúcar.

A Patativa dos Canaviais

A atividade canavieira foi um dos pilares para a formação da cultura pernambucana, influênciou no jeito de ser, de pensar e agir dos pernambucanos. Nesses quase cinco séculos de história da cana em Pernambuco, dona Brites deixou algumas herdeiras, mulheres guerreiras, visionárias que anteciparam tendências. Entre elas está dona Maria Olímpia Pugas de Moura Andrade, conhecida por dona Limpinha, a senhora do Engenho Ventura. Tive a satisfação de visitá-la por duas vezes lá em seu engenho na cidade de Nazaré da Mata. A primeira vez, em janeiro de 2003, fui para conhecer de perto aquela senhora respeitada por políticos, industriais e fornecedores de cana, todos a conheciam e contavam e recontavam suas histórias.

Dona Limpinha estava com 88 anos, lúcida, falante, simpática, vivaz. Não tivemos uma entrevista, mas uma conversa entre duas mulheres, uma com muita coisa para contar, e a outra, sedenta para ouvir e depois contar para todo mundo. Há mais de 70 anos, dona Limpinha iniciou uma batalha nos canaviais pernambucanos em defesa da qualidade de vida. Não se conformava com a precária situação da população, por isso realizava campanhas educacionais e sanitárias, escrevia em jornais, subia nos palanques e discursava nos comícios políticos. Sua fala emocionava, por isso, ganhou a alcunha de “Patativa dos Canaviais”.

Dona Limpinha me contou que chegou a ser convidada pelo governador Agamenon Magalhães para entrar na política, começaria concorrendo à prefeitura de Nazaré da Mata. “Gostei muito da ideia. Fui participar de um comício sem meu marido saber, pois ele tinha horror à política. Mas ele foi à cidade naquele dia, de longe ouviu minha voz e foi até o comício. Ficou chocado ao me ver rodeada por tanta gente que me aplaudia e gritava que eu era a mulher do povo, a representante deles. Meu marido pediu profundamente para que eu não entrasse para a política. Que aquilo seria a morte para ele. Olhando nos seus olhos cheios de lágrimas prometi que não entraria”, contou emocionada a nossa patativa.

Semeadora de escolas

Não seguiu a carreira política, mas não abandonou a vida revolucionária. Em 1960, filiou-se à organização internacional Clube da Mulher do Campo, com a finalidade de alfabetizar, educar e capacitar crianças, jovens e adultos. Construiu no engenho uma sede do Clube e uma escola. A partir daí espalhou escolas pelos engenhos, em alguns deles os donos nem ficavam sabendo.

Mas não bastava construir escolas, era preciso despertar na população o desejo de frequentá-las, muita gente não via necessidade em estudar. Dona Limpinha ficou matutando uma forma de solucionar esse problema. Foi aí que uniu perspicácia e criatividade. O ano era 1969, época em que o homem foi para a Lua, ela percebeu que esse assunto deixou o pessoal muito assustado. “Tive a ideia de escrever uma carta como se fosse o presidente do Brasil pedindo-me o nome de todos aqueles que não sabiam ler, pois seriam mandados à Lua para quebrar pedras, e os filhos ficariam nas escolas. O único jeito de não irem para a Lua seria se passassem a frequentar a escola”, contou dona Limpinha.

E foi exatamente o que ela fez, escreveu a carta e comunicou à população. A notícia correu. “Houve um alvoroço, uma choradeira, todo mundo pedindo para eu não enviar o nome, se comprometeram a ir à escola. Fiquei até arrependida. Mas o resultado foi ótimo, apareceu tanta gente querendo estudar que não havia nem lugar”, relembrou.

Dona Limpinha também era considerada o “terror” dos prefeitos da região, exigia deles transporte escolar, atendimento médico e melhores condições para a população. Disse-me que nos últimos tempos as coisas melhoraram muito. “Os prefeitos mandam ônibus buscar as pessoas, há alimentação e distribuição de material escolar. Eles fazem tudo direitinho, pois sabem que eu vou lá cobrar, não dou folga. Até se arrepiam quando apareço”, contou com um rizinho maroto.

Festas e responsabilidade social

Além de disseminar conhecimento, dona Limpinha também abriu o Engenho Ventura para festas e diversões, o que proporcionaram muitas histórias engraçadas. Uma delas, aconteceu quando montaram um cinema no engenho. “Muitos vieram prestigiar, nunca haviam ido ao cinema, nem imaginavam como era. O primeiro filme foi de cowboy, quando começaram os tiros, todos saíram correndo apavorados”, relembrou dona Limpinha.

Seu filho, José Maria Andrade Filho, disse que, influenciado por sua mãe, seu pai empreendeu uma gestão participativa, o engenho era dividido em sítios onde cada família, além da casa, tinha seu roçado, suas galinhas e vaquinhas. Há mais de setenta anos o engenho Ventura já mantinha ambulatório médico para atender seus trabalhadores, além de a escola que funciona até hoje. Para José Maria, sua mãe foi uma visionária, ousou implantar um sistema socialmente justo. Durante muito tempo foi incompreendida, mas agora é exemplo de responsabilidade social.

A segunda vez que estive no engenho Ventura, em 2005, dona Limpinha estava com 90 anos e havia diminuído suas atividades. Era seu neto Breno que mantinha viva as ações do Clube da Mulher do Campo, dando sequencia ao trabalho desenvolvido pela avó. No começo de 2008, dona Limpinha faleceu, aos 93 anos. Breno, contou-me que foi de forma serena, tranquila e no engenho, como ela queria. “A história de minha avó e do engenho Ventura é um diferencial. Enquanto muitos estão começando a aprender sobre responsabilidade social, isso fez parte da minha vida desde que nasci”, declarou o neto da Patativa dos Canaviais.

Em 22 de março deste ano, no primeiro encontro Cana substantivo feminino, tivemos a oportunidade de homenagear dona Maria Olímpia. Foi Breno quem veio representar a família. Ele estava muito emocionado pela homenagem à avó e disse que os depoimentos das mulheres presentes refletiram muito o pensamento de dona Maria Olímpia, mais uma prova de que ela sabia e fazia o que era certo, bem antes da sustentabilidade virar moda.

Fonte: Luciana Paiva