Cachaça
22-05-2019

Lendas nem sempre verossímeis "explicando" a origem das palavras aguardente e pinga vem sendo desmontadas por entendidos no tema, mas é certo que a origem da cachaça não se deu por acaso, como dizem algumas dessas lendas: foi um processo histórico lento e consistente. Os portugueses que aqui chegaram dominavam a fermentação (faziam vinho) e os índios também, com o cauim. Os portugueses, por sua vez, conheciam a destilação (os índios não%6), levada pelos árabes à Península Ibérica por volta dos séculos XV e XVI, quando introduziram o alambique na região. Assim sendo, parece certo que a união do conhecimento dos índios em fermentação de diversos vegetais, com o dos portugueses que sabiam destilar, deu origem à cachaça com a fermentação e destilação do caldo de cana, plantação que se organizava nos idos de 1530.

Com isso, o fato real é que a cachaça é o primeiro destilado das Américas a ser feito em larga escala e com importância econômica, com quase 500 anos de história. Produto genuinamente brasileiro, e primeira indicação geográfica do Brasil, esta bebida feita a partir da cana de açúcar é produzida em todo o país. Câmara Cascudo, em seu livro "Prelúdio da Cachaça", aponta que a primeira produção comercial da bebida foi no Engenho São Jorge dos Erasmos, na divisa entre Santos e São Vicente. Fundado em 1932 por Martim Afonso de Souza, o engenho teria sido vendido em 1940 para o banqueiro holandês Erasmo Schetz, cujo filho, Conrad, enviaria para o Brasil materiais de ferro e cobre (caldeirões e tachos), "modernizando" a atividade. Este engenho ainda existe, e foi doado à Universidade de São Paulo em 1985.

O Instituto Brasileiro da Cachaça acredita que existam atualmente em todo o Brasil mais de 11 mil produtores de diferentes tipos de aguardente. Desses, cerca de 1.500 estão registrados no Ministério de Agricultura e Abastecimento, com mais de 4 mil marcas também registradas. São 600 mil os empregos diretos e indiretos que dependem da cachaça, com uma produção de mais ou menos 800 milhões de litros por ano, que responde por aproximadamente 70% do mercado nacional de destilados. Com uma ressalva: se considerarmos somente as marcas standard e premium, com preço superior a 25 reais a garrafa, a cachaça é a terceira colocada entre os destilados mais consumidos no país, atrás do uísque e da vodca.

Fica evidente, com esses números, que há uma enorme clandestinidade na produção. A que se deve isso? Segundo o IBRAC, claramente à tributação sobre a bebida, que chega a 81,87%, uma das maiores cargas de impostos do país.

Tamanha tributação constitui um dos elementos centrais que impedem o desenvolvimento do segmento, com uma outra consequência negativa: somente cerca de 1% da produção nacional de cachaça é exportada, enquanto o similar mexicano, a tequila, tem 70% de sua produção exportada. Aliás, mais de 120 países consomem tequila, dos quais 46 reconhecem- e protegem- a bebida como sendo mexicana. No caso da nossa cachaça, embora seja muito apreciada por estrangeiros quem a tomam, só 3 países a reconhecem e protegem como sendo produto brasileiro (Estados Unidos, México e Colômbia), apesar de ser exportada para mais de 60 países.

Há, portanto, uma ampla tarefa a ser feita para reduzir a informalidade desse tradicionalíssimo ramo econômico, combinando tradição com inovação, promovendo sua exportação e melhorando a qualidade do produto, tendo em vista a inserção no mercado de centenas de produtores, quase todos pequenos, hoje fora da legalidade.

Antes de mais nada, é preciso mais esforços na promoção internacional da cachaça como produto genuinamente brasileiro. Mister se faz construir acordos bilaterais com países ou grupos de países potencialmente consumidores da bebida, como fazem os exportadores mexicanos de tequila, mas também os escoceses de scotch, russos e poloneses de vodca e assim por diante. Tal avanço trará mais renda e empregos formais para nosso país.

E é evidente que será necessário rediscutir a carga tributária que incide sobre o produto. Com um imposto que equivale a quatro quintos do valor do produto, fica difícil o setor evoluir. E de resto é sabido que mais imposto reduz a arrecadação e aumenta a clandestinidade. E este fato gera uma concorrência desleal para quem paga os impostos.

Finalmente, vale uma observação alvissareira: num ambiente eminentemente masculino, o setor elegeu, pela segunda vez, uma mulher como presidente da Câmara Setorial da Cachaça do Ministério da Agricultura, órgão federal que regula o tema, a dirigente baiana Alexsandra Machado. Novos ventos à vista, com a expectativa de melhorar a imagem desse nosso produto cuja história se mistura com a história do Agro brasileiro.


*Texto originalmente publicado no Broadcast Estadão em 20/05/19.

Roberto Rodrigues
ex-Ministro da Agricultura, Embaixador da FAO para o Cooperativismo e Diretor do Departamento de Agronegócios da FGV.x-Ministro da Agricultura, Embaixador da FAO para o Cooperativismo e Diretor do Departamento de Agronegócios da FGV

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