Engenheiros reafirmam aposta no etanol, com ou sem eletrificação
06-09-2018

 

O etanol de cana-de-açúcar, produzido e consumido em larga escala para movimentar a frota de veículos leves no Brasil, tem sua importância renovada e aumentada diante do contexto global de redução de emissões de gases de efeito estufa, em combinação com o surgimento de tecnologias alternativas de propulsão. No caso brasileiro o biocombustível é uma solução pronta e barata para retirar CO2 da atmosfera, já está em amplo uso, e pode ainda se tornar muito mais eficiente com a evolução dos motores e funciona bem com a eletrificação, em carros híbridos ou como gerador de eletricidade em células a combustível.

“O papel do etanol nos powertrains do futuro, dos híbridos à célula a combustível” foi o tema do painel de engenheiros-chefes do Congresso SAE Brasil 2018, realizado esta semana em São Paulo. No encontro, os participantes foram unânimes em reafirmar sua aposta no biocombustível brasileiro como solução mais eficiente para colocar o País em linha com as metas globais de redução de emissões.

“Com o etanol o Brasil tem oportunidade única no mundo de reduzir significativamente em curto prazo as emissões de CO2”, destacou o engenheiro italiano Aldo Marangoni.
Como chefe de engenharia de powertrain da Fiat Chrysler Automobiles (FCA) para a região EMEA (Europa, Oriente Médio e África), Marangoni terá de apelar muito mais à eletrificação dos veículos no mercado europeu para atingir metas apertadas de emissões do que teria se tivesse à mão o abundante álcool brasileiro. Isso porque, conforme ele mesmo destaca, ao se considerar o ciclo completo do etanol “do poço à roda” – desde a produção até sua distribuição e queima no motor –, segundo calcula o engenheiro um carro alimentado 100% com biocombustível de cana (E100), na comparação com a gasolina, deixa na atmosfera apenas entre 35% e 25% do CO2 emitido, quase todo ele vindo do transporte por caminhões a diesel do combustível das usinas aos postos, porque as emissões do escapamento, “do tanque à roda”, são quase todas reabsorvidas pelas plantações de cana.

Medido por essa mesma régua, um modelo elétrico emitiria quase a mesma quantidade de CO2, considerando que a geração de eletricidade “suja”, de fonte fóssil, para alimentar duas baterias.

INFRAESTRUTURA PRONTA COM POTENCIAL PARA CRESCER

Como maior produtor mundial de cana, a fonte mais eficiente de extração de etanol – capaz de reduzir em 78% as emissões de CO2, contra 44% quando é extraído do milho –, o Brasil é o único país do mundo a fazer uso intensivo dessa energia de baixo índice de carbono para movimentar carros; e isso acontece desde 1975, quando foi criado o Proálcool como alternativa à crise do petróleo. Com infraestrutura estabelecida, a indústria da cana hoje emprega cerca de 800 mil pessoas em sua cadeia de produção, que gira algo como US$ 100 bilhões por ano e corresponde a perto de 2% do PIB brasileiro.

“A infraestrutura de produção e distribuição está pronta e ainda tem muito espaço para crescer”, lembra Marangoni, ao apontar que os 28 bilhões de litros de etanol produzidos por 411 usinas em 2017 vieram de 8,7 milhões de hectares de plantações de cana, ou apenas 2,8% da área agriculturável do País. Existe potencial para dobrar essa cobertura sem impacto ambiental relevante.

A presença do etanol na matriz energética veicular brasileira como está hoje já reduz significativamente a pegada de carbono dos veículos leves vendidos no País. O E100 é responsável atualmente por 22% do consumo de combustíveis de carros com motor ciclo otto, e os outros 78% consomem gasolina com adição mínima de 22% de etanol. Levando em conta esse mix e as emissões do poço à roda, um veículo leve aqui emite 66 gramas de CO2 para cada megajoule (MJ) gasto, enquanto em um carro abastecido só com gasolina essa emissão sobe para perto de 85 g CO2/MJ, segundo cálculos feitor pelo engenheiro Roger Guilherme, gerente de powertrain da Volkswagen do Brasil. Usando apenas E100, o mesmo índice cai para 20 g CO2/MJ, enquanto um carro elétrico que consome energia gerada de maneira “suja” pode emitir perto de 25 g CO2/MJ.

Marangoni pontua também que o etanol é mais limpo em emissões de poluentes como material particulado e NOx. A octanagem do biocombustível é maior, 110 octanas contra 85 da gasolina comum até 100 se aditivada, o que rende mais potência. Mas a maior desvantagem segue sendo seu poder calorífico menor: o motor alimentado com combustível fóssil com mistura de 22% de álcool consome 30% menos do que com E100.

“Como comunidade de engenharia devemos trabalhar para reduzir essa diferença entre etanol e gasolina, para melhorar o apelo do biocombustível ao consumidor final. O motor a etanol de alta eficiência não é sonho, é uma realidade possível com aplicação de algumas tecnologias já dominadas”, sugere o engenheiro.

Para Roger Guilherme, da Volkswagen, faz mais sentido explorar as possibilidades de melhorar o potencial energético do etanol antes de partir para soluções caras de eletrificação. Além disso, como forma de incentivar o uso de biocombustíveis, ele sugere que o Brasil passe a adotar tributação de combustíveis baseada no índice de carbono de cada um, que pode ser medido em gCO2/MJ.

“A tecnologia do futuro vai ser diversa e nossa oportunidade é maior com o etanol e biometano. Por isso a redução de emissões de CO2 não é motivação para eletrificação de veículos de passageiros no Brasil. Pode ser na Europa ou China, mas aqui só para algumas aplicações específicas especialmente em centros urbanos”, avalia Guilherme.
BIOCOMBUSTÍVEL ELETRIFICADO
Se sozinho o etanol renovável tem grandes vantagens ambientais sobre combustíveis fósseis, quando aliado à eletrificação do powertrain o cenário pode melhorar ainda mais. É o caso, por exemplo, de veículos híbridos equipados com motores elétrico e a combustão bicombustível (flex fuel). Este ano a Toyota deu início a testes de seu híbrido Prius equipado com motor flex fuel; e tudo indica que pretende lançar o carro no mercado brasileiro em breve.

“Temos desafios pela frente com o programa Rota 2030 para aumentar a eficiência dos veículos produzidos no Brasil e acreditamos que a tecnologia flex fuel terá papel central nessa evolução, inclusive para aplicação em carros híbridos”, destacou Gino Montanari.
Outro engenheiro italiano no painel, Montanari é gerente de pesquisa e desenvolvimento da Magneti Marelli, primeira empresa no País a desenvolver o sistema flex fuel comandado pela central eletrônica de gerenciamento do motor, que estreou em 2006 a bordo do Volkswagen Gol. Desde então, 35 milhões de carros bicombustível já foram produzidos e vendidos no Brasil e em torno de 88% das vendas no mercado doméstico são de veículos flex. “Isso já evitou a emissão de 440 milhões de toneladas de CO2 na atmosfera”, destaca.

Para ele, no médio prazo a tecnologia vai migrar para os veículos híbridos, incluindo os mild hybrids: modelos equipados com sistema elétrico de 48 volts, com bateria de lítio e recuperação da energia das frenagens, para alimentar um propulsor elétrico de impulsão, usado nas partidas, combinado ao start-stop que desliga o motor a combustão não só quando o carro para, mas também quando roda em inércia.

O GRANDE SALTO: ETANOL PARA CÉLULAS A COMBUSTÍVEL
“O grande desafio de longo prazo para a engenharia brasileira será construir o carro elétrico com células a combustível alimentadas por etanol”, afirma Montanari. Já existem pesquisas avançadas em andamento para esse uso muito mais eficiente do etanol.

Espécie de gerador eletroquímico alimentado por hidrogênio, as células a combustível geram energia suficiente para fazer rodar um carro elétrico. O processo gera apenas vapor d’água no cano de escape. O grande salto tecnológico em estudo é extrair hidrogênio do etanol, por meio de um reformador químico, para abastecer essas células. Assim o veículo poderia ser abastecido diretamente com álcool e gerar internamente toda a energia elétrica necessária para rodar, com autonomia muito parecida a de um modelo equipado com motor a combustão – algo como 400 a 600 quilômetros antes de precisar encher o tanque.

Pesquisas nesse sentido vem sendo feitas no Ipen (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares) desde o início deste século. Existe em andamento um programa de desenvolvimento de células a combustível iniciado em 2016, com verba de US$ 1 milhão/ano, que vai até 2022.

“A tecnologia está evoluindo e o etanol já mostrou ser um excelente combustível para as células, o desafio agora é desenvolver um reformador viável para extrair o hidrogênio [do biocombustível]”, revelou Fábio Fonseca, gerente do centro de células a combustível do Ipen.

A tecnologia já foi testada na prática no Brasil em 2016, quando a Nissan trouxe para rodar aqui o eBio Fuel Cell, uma minivan NV200 elétrica equipada com um reformador de etanol, que extrai hidrogênio do biocombuistível (E100 ou com até 45% de água) para injetar o gás nas células sólidas (de cerâmica) que geram eletricidade para o motor. “O protótipo foi trazido para ser testado em ruas brasileiras por causa da facilidade de abastecimento de etanol disponível no País”, explicou Ricardo Abe, gerente de engenharia de produto da Nissan Brasil.

“O eBio Fuel Cell roda como um veículo convencional, é abastecido em qualquer posto com etanol e roda até 600 km com custo muito baixo parecido ao de um elétrico”, contou Abe, mostrando que a mesma NV200 a gasolina gasta cerca de R$ 0,30 por quilômetro rodado, enquanto o carro com células a combustível alimentadas com hidrogênio extraído do etanol esse gasto é de apenas R$ 0,09/km.

O protótipo já encerrou os testes por aqui e voltou ao Japão. Provou que funciona e a Nissan tem planos de lançar o modelo comercialmente em 2020, mas a tecnologia embarcada ainda é cara. “Estudamos a possibilidade de continuar as pesquisas no Brasil com alguns incentivos que podem ser obtidos”, informa Abe.