O “mãe” da bioeletricidade
09-10-2020

Onorio Kitayama partiu no final de 2015, mas deixou uma luz tão intensa que ajuda a iluminar o Brasil

Luciana Paiva

Conheci Onorio Kitayama, grande especialista em bioeletricidade, na década de 1990, foi na sede da Sociedade dos Produtores de Açúcar e Álcool (Sopral). Fui entrevistar Lamartine Navarro Júnior (um dos pais do ProÁlcool), na época presidente da entidade, e ele apresentou-me Onorio, que era diretor da Sopral.

Tranquilo, Onorio observou a entrevista. Já acostumado, não se abalava nem com os rompantes de Navarro Júnior toda vez que mencionava o descaso do governo para com o combustível verde. A partir daquele encontro, eu e Onorio estreitamos laços e nos tornamos amigos, tudo simples assim. É que fazer amigos era algo bastante natural para ele.

Onorio também era uma importante fonte de informação, ainda mais quando o assunto era geração de energia com a biomassa da cana. Especialista no assunto, assumiu, em 2001, a função de responsável pela área de Bioeletricidade na União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), depois ocupou ainda as funções de consultor da Coimex Energia e diretor-executivo da Nascon Agroenergia.

O JAPONÊS MAIS BRASILEIRO QUE EXISTE

 “Sou o japonês mais brasileiro que existe”, disse-me uma vez Onorio. Contou-me que nasceu em Presidente Wenceslau, seu pai, um comerciante de batatas, nunca morou em uma colônia japonesa e o colocou para estudar em escolas brasileiras. “Ele acreditava que se eu aprendesse português teria mais chances de vencer na vida”, observou.

Inicialmente, Onorio achava que o bagaço era muito nobre para queimar nas caldeiras, e defendia a produção de etanol de segunda geração

Em 1965, Onorio foi cursar agronomia na Esalq em Piracicaba, onde morou em uma república com estudantes santistas. “Santista é que nem carioca, bem tranquilo, aí fiquei menos japonês ainda”, disse. Depois de formado, seu primeiro emprego foi na cooperativa de Cotia. “Eles queriam um japonês ‘sem vergonha’, que não morasse na colônia, para se relacionar com os fornecedores. Fui o escolhido.”

Um ano depois voltou para Presidente Wenceslau e fundou uma empresa de planejamento agronômico, como na época surgiu o ProÁlcool, começou a incentivar a instalação de destilarias na região, foi quando conheceu Lamartine Navarro Júnior. “Logo de cara brigamos, mas em seguida nos tornamos grandes amigos”, relembrou. Depois disso entrou de cabeça e coração no setor sucroenergético, ajudando a implantar as primeiras destilarias autônomas, não só no Oeste paulista, mas também em outros estados, como a Dalva (atual Alvorada) em Minas Gerais e a RS (atual Santa Olinda) em Mato Grosso do Sul. Também foi dono da Destilaria de Álcool Caiupa (Decasa), e em 1983, assumiu a função de diretor-superintendente na Sopral.

O NASCIMENTO DA BIOELETRICIDADE

Onorio confessou-me que era contrário à cogeração de energia. “Achava que o bagaço era muito nobre para queimar nas caldeiras, e defendia a produção de etanol de segunda geração”, disse. Apenas para não deixar o álcool morrer, ele “engoliu” a cogeração. Entretanto começou a se especializar e aprimorar os estudos, o envolvimento chegou e daí percebeu a importância do assunto. Em 2004, veio a ligação da cogeração com os créditos de carbono e a ficha caiu de vez.

“Ninguém havia associado a cogeração com o meio ambiente, então eu falei, vamos passar a falar bioeletricidade, pois é o que realmente representa. Então, sou o ‘mãe da bioeletricidade’, não pai, porque pais têm muitos”, brincou Onorio, completando com uma gostosa gargalhada.

Nessa conversa, ainda anunciou que com a bioletricidade a cana ganhava um novo nome. “Era cana-de-açúcar porque na época só se fazia açúcar, mas agora mudou, produz energia, então deve ser cana energética.”

“Chegamos até a ouvir de uma autoridade do setor elétrico, que essa energia era “podre”, porque é sazonal só na safra”

BIOELETRICIDADE CHEGOU A SER CHAMADA DE COMBUSTÍVEL PODRE

Mas Onorio ressaltou que, apesar de ser uma solução fantástica para a matriz energética brasileira, o parto da bioeletricidade foi muito difícil. Relembrou que nos anos 2000 os níveis dos reservatórios, indicavam riscos de segurança no abastecimento. “A solução estava planejada, afinal 49 projetos térmicos a gás natural, já estavam inscritos no programa prioritário de térmicas (PPT), além disso, haviam afirmações como, as chuvas estão atrasadas, mas deverão chegar na próxima estação favorável. Infelizmente, aconteceram poucas térmicas e também poucas chuvas, e veio o racionamento em 2001”, contou.

Nessa época, continuou Onorio, a configuração da matriz energética era debatida no Ministério de Minas e Energia (MME). “Ao tomarmos conhecimento da existência do risco hidrológico, sugerimos o aproveitamento do potencial da cogeração do bagaço. A reação da maioria foi de incredulidade. Estávamos diante de um problema sério, e vem alguém brincando com uma solução com bagaço? Bagaço de cana? Chegamos até a ouvir de uma autoridade do setor elétrico, que essa energia era “podre”, porque é sazonal só na safra. Infelizmente, o conceito hidrotérmico ainda não era admitido, e a cultura no setor indicava que fonte elétrica no país era hidreletricidade e nem sazonal ela era, pois tinha a energia assegurada e o mecanismo de Mecanismo de Realocação de Energia (MRE).”

O fato de a sugestão vir de pessoas não ligadas ao setor elétrico, mas sim da Unica, do setor sucroenergético, fez com que fosse mais repudiada. “Ficamos indignados, pois sabíamos que o potencial era grande, e iniciamos uma busca por parceiros dentro do setor elétrico e afins, que não consideravam a nossa energia ‘podre’, e poderiam compreender e contribuir para a comprovação do seu valor e da importância do seu aproveitamento para o país”, disse Onorio.

“Sou o japonês mais brasileiro que existe”, disse Onorio

A IMPORTÂNCIA DA BIOELETRICIDADE

Com a crise, veio o PROINFA, incentivando o uso das fontes alternativas: PCH, biomassa e eólica, por cotas de 1.100 MW por fonte, com preços diferentes, mas compatíveis aos custos da época e com o objetivo de incentivá-las. “Sentimos que o reconhecimento das virtudes da cogeração e de sua importância foram se espalhando, concomitantemente, dentro do próprio setor sucroenergético, assim como do setor elétrico. Em seguida, a própria Ministra de Minas e Energia, na época Dilma Rousseff, anunciou regras incentivando o aproveitamento dessa fonte energética, com base em estudos técnicos comprovando seu valor como energia complementar e após visitar um projeto térmico numa usina e os fabricantes de equipamentos dessas térmicas, constatando estar diante de uma tecnologia já dominada.

Onório lembra que a partir daí as usinas passaram a participar dos leilões, com números crescentes de projetos e de oferta de energia por projeto, acompanhando o próprio desenvolvimento tecnológico que começava a surgir e isso aconteceu até 2008, quando foram vendidos 600MW de capacidade.

A entrada na geração dos projetos permitiu a avaliação do Operador Nacional do Sistema Elétrico (NOS), chegando a conclusão de que a cada 1.000 MWm dessa energia, ocorria uma economia de 4% de água nos reservatórios, por consequência um eventual aproveitamento de 5.000 MWm, teria um impacto na economia de água da ordem de 20% nos nossos reservatórios. Para Onorio, essa constatação, representava o reconhecimento definitivo da importância da bioeletricidade e a partir daí só restava o estabelecimento de uma meta prioritária para viabilizá-la, a de se atingir uma capacidade de economia de água de 20%, nos reservatórios.

A bioeletricidade pode muito mais, e se ainda não o fez, não é por culpa da cana, mas porque as mentes de nossos governantes são muito pouco iluminadas

Mas disse estar acompanhando com muita tristeza os acontecimentos posteriores a 2008, pois os projetos de bioeletricidade deixaram de ter espaço entre as energias novas que eram vendidas nos leilões. Mostrando que a meta a ser perseguida, de deter uma capacidade de economia de 20% de água nos reservatórios do país, infelizmente não estava contemplada na política e diretriz de entrada de energias novas, apenas a modicidade tarifária.

Onorio partiu na tarde de 25 de dezembro de 2015. Mas sua missão foi gloriosa, além de iluminar o coração de quem os conhecia, também foi um dos responsáveis em possibilitar que a energia gerada pela biomassa da cana pudesse clarear de forma sustentável milhões de residências no Brasil. Era sabedor de que a bioeletricidade pode muito mais, e se ainda não o fez, não é por culpa da cana, mas porque as mentes de nossos governantes são muito pouco iluminadas.

Fonte: CanaOnline