Revolução no canavial
11-12-2014

O que era um resíduo da cana-de-açúcar acaba de assumir papel nobre na produção de biocombustível no Brasil. A palha que sobra no campo depois da colheita e a matéria-prima da primeira usina do pais a fabricar o etanol celulósico, também conhecido como etanol de segunda geração (2G).

A Usina Bioflex I, em São Miguel dos Campos (AL), a 60 quilômetros de Maceió, começou a funcionar em setembro deste ano e já produziu mais de 1 milhão de litros de etanol anidro, aquele que é misturado á gasolina. Por enquanto, a fabrica opera com 30% da capacidade, "Ate o meio de 2015, estaremos funcionando a todo vapor, com condições de fabricar 82 milhões de litros de etanol celulósico por ano", afirma o vice-presidente de operações da empresa, Manoel Carnaúba, O Estado de Alagoas foi escolhido por ser um dos principais produtores de cana-de-açúcar do pais e pela proximidade com o porto de Maceió, o que vai facilitar a exportação do produto.

A tecnologia e nova não só no Brasil. A usina é a primeira do Hemisfério Sul e a terceira no mundo a operar em escala comercial. As outras duas estão nos Estados Unidos e na Itália, E foi na fábrica italiana que a empresa brasileira Granbio buscou parte da tecnologia usada para implantar a unidade em Alagoas. Levou um grupo de funcionários para um intercâmbio lá e agora conta com a ajuda de técnicos italianos para essa fase inicial de produção. "Estamos aprendendo dia a dia, com todos os processos", diz Carnaúba, engenheiro químico que sempre se dedicou ao setor petroquímico e, pela primeira vez, trabalha com o etanol.

O etanol de segunda geração pode ser fabricado a partir da celulose presente em qualquer parte da planta. A Granbio está utilizando a palha, mas tem tecnologia para produzir também o etanol do bagaço da cana. O álcool combustível 2G, em sua formulação física e química, é idêntico ao etanol de primeira geração já conhecido no Brasil. O que muda é a matéria-prima e o processo de produção.

Hoje, as usinas de cana produzem etanol a partir da fermentação da sacarose, que está no caldo da cana. É esse açúcar que vira álcool. Na segunda geração, é preciso encontrar os açúcares que estão nas fibras. Para isso, são quatro etapas. Primeiro, a biomassa (palha) é pré-tratada. Ela e cozida e passa por um processo de explosão a vapor, para que a celulose e a hemicelulose sejam acessadas, Na etapa seguinte, a hidrolise enzimática, a celulose e a hemicelulose são quebradas em moléculas de açúcares simples, como glicose e xilose, pela ação de enzimas. Na fermentação, esses açúcares são transformados em etanol com o uso de leveduras. E, por fim, o produto passa para a destilação. Cada 5 toneladas de palha produzem, em média, 1 tonelada de etanol.


Certificado dos EUA

O processo e sustentável à medida que aproveita todas as substâncias envolvidas. A lignina - o cimento da estrutura das fibras que garante a rigidez da planta - é separada e destinada a cogeração de energia elétrica. E a vinhaça, subproduto da destilação composto por água, matéria orgânica e minerais, é reutilizada como fertilizante para as lavouras de cana.

A usina recebeu do governo da Califórnia (EUA) o certificado de bioetanol limpo, pela baixa emissão de carbono desde a coleta da matéria-prima, passando pelos insumos e consumo de energia, até o transporte e a distribuição. O índice comprovado pelo Air Resources Board (ARB) é de 7,49 g C02/MJ, ou seja, a fabrica libera 7,49 gramas de carbono por unidade de energia produzida. A partir dessa certificação, a empresa quer focar suas exportações para o pais americano no segundo trimestre de 2015. Até lá, o biocombustivel será comercializado na região nordeste do Brasil.

O investimento foi de US$ 190 milhões para a construção da fabrica e o desenvolvimento da tecnologia, mais USS 75 milhões para as caldeiras de cogeração de energia. A unidade teve financiamento de RS 300 milhões pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) por meio do programa PAISS (Plano Conjunto de Apoio à Inovação Tecnológica Industrial dos Setores Sucroenergetico e Sucroquimico).

O custo fixo é alto, principalmente por causa do processo que utiliza as enzimas para a quebra dos açúcares (hidrólise enzimática), de acordo com o vice-presidente. "É uma tecnologia pouco utilizada no mundo. Então a escala de produção dessas enzimas ainda é pequena. Acreditamos que, com o desenvolvimento da tecnologia e a construção de novas fábricas, vamos ter uma redução no custo." Por outro lado, Manoel Carnaúba explica que o custo de produção é baixo.

"Primeiro, porque a palha é uma matéria-prima mais barata que a cana-de-açúcar. Segundo, porque estamos conseguindo uma eficiência muito boa na conversão da biomassa em álcool, gerando assim um etanol cerca de 20% mais competitivo do que o etanol 1G."

Para o consultor de emissões e tecnologia da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), Alfred Szwarc, a alavancada no setor industrial, com o avanço tecnológico e o apelo da sustentabilidade do etanol de segunda geração, deve agregar valor ao produto brasileiro e, assim, abrir espaço no mercado externo. "Vamos produzir mais etanol a partir da mesma quantidade de matéria-prima, sem necessidade de abrir novas áreas de plantio, o que gera uma economia no uso de implementos agrícolas."

Ele lembra também que duas outras unidades no pais estão trabalhando para a produção do etanol da palha e do bagaço da cana. A Raízen, com sede em Piracicaba (SP), deve produzir 40 milhões de litros de etanol 2G por ano. A planta está sendo finalizada e deve operar comercialmente ainda em 2014, segundo a assessoria de imprensa da empresa. Também no Estado de São Paulo, o Centro de Tecnologia Canavieira (CTO montou uma fábrica demonstrativa de produção de etanol celulósico junto à Usina São Manoel, com previsão de licenciar a tecnologia até 2016.


Matéria-prima

Num centro de distribuição de 40 hectares, próximo à usina em São Miguel dos Campos (AL), estão armazenadas 150.000 toneladas de palha em fardos. 0 montante e o que foi colhido na safra 2013/2014, em áreas de três usinas de açúcar e álcool da região.

A Granbio fechou uma parceria com empresários e compra a palha que fica no campo, logo apos a colheita mecanizada. É nesse momento que entram em cena as colheitadeiras importadas. Nos Estados Unidos e Europa, elas são usadas para a produção de feno. Nos canaviais de Alagoas, as maquinas foram adaptadas. Uma delas, formada por discos enleiradores, recolhe a palha, e a outra transforma a palhada em fardos. Mas o material não e todo retirado do solo. As maquinas são reguladas para captar apenas 50% dos residuos. "A palha tem a função de guardar a umidade. Ela e muito benéfica aqui no Nordeste, por isso não podemos aproveitar tudo", explica o gerente de materias-primas da Granbio, Sergio Godoy.

Os usineiros que entraram no projeto veem vantagens no recolhimento de parte desse material. "A palha ficava toda no campo. Em grandes áreas, isso se tornava até perigoso, por causa dos incêndios", afirma o diretor da Usina Caeté, Aryl Lyra. 0 superintendente da Triunfo Agroindustrial SA, Paulo Roberto Lira, diz que, com menos palha, aumenta a incidéncia de ar e luz no solo, o que acelera a brotação. Alem disso, é uma forma de controlar a cigarrinha da raiz da cana-de-açúcar, praga que encontra na umidade da palha um ambiente propicio para proliferar. "Isso é mais compensador do que o retorno financeiro."


Cana-energia

Para não depender apenas da palha e do bagaço da cana, a Granbio pensou numa maneira de produzir mais materia-prima para a produção de etanol 2G. No município de Barra de São Miguel (AL), a empresa montou uma estação experimental para desenvolver uma nova variedade de cana. É a cana-energia, chamada de "Vertix", uma planta melhorada geneticamente para ser mais fibrosa do que a cana convencional.

O agrônomo José Bressiani. diretor agrícola da empresa, é um dos coordenadores do programa. O paulista, criado em Piracicaba (SP), trabalha há 20 anos com melhoramento genético de cana-de-açúcar e agora lidera essa nova fase de experimentos. "Estamos voltando a pesquisa em 120 anos", diz, referindo-se aos melhoramentos que foram feitos ao longo do tempo para agregar mais açúcar à cana. "Agora, queremos resgatar a rusticidade das especies mais antigas."

Mais de 300 variedades de cana foram importadas dos Estados Unidos e formam um banco de germo-plasma. São espécies ancestrais, originárias da Ásia, que estão sendo cruzadas com variedades comerciais. Em operação desde o inicio de 2012, a estação experimental produz 100 mil mudas por ano, que vão a campo para análise. As amostras passam por várias etapas de testes. Só permanecem na pesquisa as que tiverem potencial para se tornar cana-energia. Alguns clones já estão na fase final de avaliação.

Visualmente, a cana-energia tem colmos mais finos e em maior quantidade, que se espalham pelas touceiras. A ideia é produzir o dobro de biomassa numa mesma área. Estamos falando numa fibra de 25%, 30%, enquanto na cana convencional essa fibra é de 12%", descreve Bressiani. Já a quantidade de açúcar deve ser bem menor: a metade do que produz uma cana convencional.

Outra característica apontada pelo agrônomo é a capacidade da cana-energia de produzir rizomas, que, associada a um sistema radicular vigoroso, permite que a planta brote com mais rapidez. Bressiani acredita que o canavial de cana-energia vai ter uma longevidade muito maior. Deve suportar até 15 colheitas, segundo ele. Na cana convencional, a cultura resiste, em média, a cinco cortes.

A expectativa da empresa é que, até o fim de 2015, a cana-energia esteja pronta para ser comercializada. Jose Bressiani afirma que a nova variedade poderá ser plantada até mesmo em solos de baixa fertilidade, por ser mais resistente. "Não queremos competir com a cana-de-açúcar nem com a produção de alimentos. Queremos explorar áreas degradadas do pais e incentivar a produção de biomassa."


Cristina Vieira e repórter do Programa Globo Rural