Sem liquidez, Coruripe busca R$ 800 mi com CRA em plataforma
16-07-2019

Uma usina de açúcar e álcool de Alagoas, chamada Coruripe, está levantando R$ 800 milhões no mercado por meio de um certificado de recebíveis do agronegócio (CRA). A oferta foi estruturada pela XP e está sendo vendida em sua plataforma para investidores qualificados, com pelo menos R$ 1 milhão em aplicações financeiras. A operação chama a atenção do mercado por duas razões. Uma delas é o fato de a Coruripe estar em uma situação financeira frágil. A captação de recursos por meio desse CRA é crucial para solucionar problemas de liquidez de curto prazo da usina. A outra questão é que a Coruripe deu como garantia para esse CRA créditos que estima ter a receber por conta de uma ação que move contra a União por perdas que teve com políticas governamentais que interferiram nos preços praticados no setor na década de 1980.

Na avaliação de especialistas, entender, a ponto de tomar uma decisão de investimento, os números da Coruripe, as garantias oferecidas e a estruturação dessa oferta exige uma análise bastante sofisticada. Ainda que o produto esteja sendo oferecido ao varejo qualificado, analistas acreditam que esse seria um papel mais adequado para um gestor especializado em títulos de alto risco. "Não tenho nada contra o CRA da Coruripe, só não acho que seja um produto de plataforma", diz um gestor.

O CRA atrai o investidor pessoa física, porque conta com o incentivo fiscal. O produto surgiu para estimular o financiamento aos produtores rurais, que embalariam em um título seus recebíveis contra grandes empresas para vender a investidores no mercado. Com o passar do tempo e os ajustes de mercado, transformou-se em uma espécie de debênture que a empresa emite para uma securitizadora. O investidor corre o risco de financiamento da empresa emissora e não dos recebíveis - nesse último formato, o CRA é muito utilizado pelas grandes do setor que, por conta do incentivo fiscal, captam a custos menores.

A questão é que essas grandes que emitem CRAs têm notas "A" ou "AA" das agências de avaliação de risco, o que indica baixo risco de crédito. No caso da Coruripe, a Standard & Poor's rebaixou a nota da usina em outubro do ano passado. O rating de crédito de emissor de longo prazo na escala global passou de "B+" para "B-". O rating de crédito de emissor de longo e curto prazos da empresa na escala nacional saiu de "brAA-/brA-1+" para "brBBB-/brA-3". As notas têm perspectiva negativa.

O analista Bruno Matelli, da S&P, afirma que a Coruripe é uma empresa em situação delicada e que permanece com questões de liquidez a enfrentar no curto prazo, próximos 12 meses. A emissão do CRA, segundo ele, ajudou a empresa a enfrentar uma situação mais aguda de vencimentos entre maio e junho. Por essa razão, a nota da usina não foi rebaixada. Mas como o problema de liquidez permanece, e a emissão do CRA ainda está aberta, também não houve razão para tirar o viés negativo da nota.

"O rating de outubro refletia a quantidade de vencimentos entre maio e junho e a possibilidade de a empresa quebrar 'covenants' [compromissos financeiros]. Como ela conseguiu, com recursos desse CRA, fazer os pagamentos e também obteve perdão dos credores, não rebaixamos a nota", afirma Matelli.

A nota "B-" da Coruripe em escala global é uma antes da "CCC", que indicaria problemas na estrutura de capital da companhia.

A oferta do CRA da Coruripe tem distribuição continuada. Pode ficar aberta na plataforma da XP por até seis meses, até novembro, ou até alcançar o valor pretendido. À medida que os investidores vão comprando os papéis, os recursos vão entrando no caixa da companhia. Como o dinheiro em caixa não é carimbado, as informações que circulam são de que os recursos da captação estão sendo usados para reduzir o endividamento, inclusive pagando a emissão de outro CRA, de cerca de R$ 200 milhões, que a usina colocou no mercado no meio do ano passado.

No prospecto da operação, a Coruripe diz que os recursos seriam usados para pagar os custos da emissão e a compra de insumos agrícolas necessários à produção e industrialização de cana-de-açúcar. O CRA, por definição, só pode ser usado para financiar atividades ligadas ao agronegócio.

Endividada, Usina Coruripe foi rebaixada pela S&P em outubro, com perspectiva negativa

O Valor apurou que a tese que tem atraído investidores é a de que, uma vez que a empresa solucione a questão do endividamento, conseguirá uma elevação do rating e, dessa forma, o CRA terá seu preço valorizado no mercado secundário. O prospecto da oferta alerta que a negociação dos CRAs no mercado brasileiro é ainda restrita.

Esse papel não conta com acompanhamento específico do mercado. O único relatório de análise da operação foi feito pela equipe da Eleven Financial. A recomendação da casa para seus clientes é a de não fazer o investimento. Na avaliação da Eleven, a Coruripe possui baixa probabilidade de atingir perfil adequado de liquidez e crédito no médio prazo, mesmo após concluir essa captação.

Nos cálculos dos analistas Odilon Costa, Gabriel Fusco e Diana Stuhlberger, a geração de caixa operacional da Coruripe seguirá estável ao longo das próximas duas safras. O cenário base considera que o fluxo de caixa livre será entre R$ 125 milhões e R$ 150 milhões ao ano no período. Mas eles apontam que a necessidade de recursos para renovação do canavial da usina deve consumir cerca de R$ 500 milhões ao ano até 2021.

Ainda conforme o relatório, o colchão de liquidez atual (R$ 510 milhões) e a geração orgânica de caixa são insuficientes para amortizar as obrigações da usina que vencem neste ano e no próximo. "Embora a emissão do CRA seja crucial para 'destravar' a rolagem de dívidas de curto prazo (R$ 1 bilhão), a liquidez da empresa continuará apertada nas próximas colheitas", destaca a Eleven. Parte significativa das dívidas da Coruripe vence em 2020 e 2021 (R$ 665 milhões) e 2021 e 2022 (R$ 624 milhões). A Eleven considera que outros exercícios de reperfilamento ainda serão necessários para assegurar a solvência da empresa no médio prazo.

Com relação aos covenants, a Eleven aponta que a Coruripe ainda tem outros por vencer e deverá continuar tendo de negociar "waivers" (perdões), com "disputas" de garantias com outros credores, que podem acarretar em aceleração de dívida, restrições ao financiamento ao longo das próximas safras e/ou uso indevido dos recursos oriundos do CRA. "Os recursos do CRA podem ir diretamente para serviço de dívida, o que parece estar acontecendo, em vez de alocação em atividades do agronegócio", escreve, também, a Eleven.

A dívida líquida da Coruripe é de cerca de R$ 2 bilhões e metade está atrelada ao dólar. O comportamento da moeda americana em relação ao real e a queda nos preços do açúcar levaram a empresa às dificuldades atuais, fatores que acabam sendo desafiadores para todas as empresas desse segmento. O ponto positivo da emissão do CRA é que ele pode reduzir o endividamento em dólar da usina para cerca de um terço, o que poderá ser mais favorável para as suas finanças.

Além disso, a Coruripe tem trabalhado para aumentar a participação de etanol e da cogeração em suas receitas, para diversificar seu negócio, hoje ainda mais atrelado ao açúcar. A empresa tem unidades industriais em Minas e Alagoas, em condições diferentes da maioria do setor, que tem operações no centro-sul.

Se houver excesso de demanda, o CRA poderá chegar a até R$ 960 milhões. O valor mínimo para a compra é de R$ 10 mil.

Procurados pelo Valor, XP, Coruripe e o Souza Cescon Advogados não deram entrevista, alegando período de silêncio obrigatório para as ofertas regidas pela Instrução 400 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

 

Valor Econômico