O impacto na indústria com a mecanização da colheita
13-09-2017

A colheita de cana crua mecanizada está crescendo rapidamente no País e, em São Paulo, já está próxima a 100%. Isso é irreversível. Esse cenário trouxe novos problemas não só para a área agrícola, mas também para a indústria, sendo essa situação percebida normalmente de forma qualitativa, havendo um certo desconhecimento sobre os reais efeitos na recuperação do ATR da cana, na qualidade dos produtos e também nos custos de produção.

O que mudou, e ainda está mudando, é essencialmente a qualidade da cana: antes queimada e lavada, hoje crua e sem lavar. Com a velocidade que foi introduzida a mecanização em algumas regiões, os impactos dessa mudança foram subestimados.

No entanto, a mudança de qualidade foi "apenas" no aumento das impurezas minerais (IM) e vegetais (IV), o que pode ter deixado muitas usinas despreocupadas. Todavia, outros importantes produtores de cana e de açúcar no mundo já tratam do assunto há muito tempo: a África do Sul desde os anos 1980, e a Austrália e Estados Unidos nos anos 1990.

Vários testes em condições operacionais em usinas foram realizados, com condições de colheita variadas que resultaram em diferentes níveis de impurezas vegetais na cana entregue na usina: cana inteira queimada, cana picada queimada e crua, sistema de limpeza das colhedoras ligado ou não; as porcentagens de palha na cana variaram amplamente de 2% até 18%.

Os impactos das impurezas vegetais em vários setores da usina foram consideráveis e com grande concordância qualitativa: redução do Pol e aumento da fibra da cana; redução no nível de preparo e embuchamento; perda de capacidade de moagem e de eficiência de extração (maior arraste de açúcar pelo aumento da quantidade de bagaço); aumento da cor e redução da pureza do caldo misto; aumento do volume de lodo e de melaço e piora na cor do açúcar.

Além disso, observa-se também um aumento dos custos de manutenção devido ao maior desgaste nos equipamentos (preparo, moenda, esteiras, bombas, tubulação) e aumento das incrustações nos evaporadores. Pode-se argumentar que as usinas nesses países são diferentes das brasileiras, com moendas com rotação mais baixa e melhor extração e fazendo só açúcar, porém algumas usinas brasileiras, mais atentas a esses problemas, já detectaram impactos semelhantes e estão procurando soluções para minimizar os efeitos negativos.

Além do mais, o uso da palha em caldeiras de bagaço no Brasil já está se expandindo e apresentando problemas de embuchamento na alimentação, corrosão e depósitos nas superfícies de troca térmica e chaminés. Experiências em outros países e um programa de testes financiado e organizado pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos, com a queima de resíduos agrícolas e outras biomassas, indicaram que esses problemas de corrosão e formação de depósitos nas caldeiras são causados principalmente pelos altos teores de álcalis (potássio e sódio), cloro e enxofre encontrados nos resíduos agrícolas, inclusive na palha de cana-de-açúcar.

Outros testes com esses resíduos, dentro e fora do programa do Departamento de Energia dos Estados Unidos, mostraram que esses contaminantes são removíveis por meio da lixiviação com água, processo facilitado se a biomassa for triturada previamente. Algumas poucas usinas no Brasil estão lavando a palha, através do transporte via úmida entre o Sistema de Limpeza a Seco (SLS) e a entrada do último terno da moenda, no qual a palha é misturada ao bagaço e moída conjuntamente, conforme mostrado na ilustração (Usina São Luiz).

O interesse nesses casos é eliminar o picador de palha e a peneira rotativa e a necessidade de um sistema independente de transporte de palha para as caldeiras. O CTBE, dentro do Projeto SUCRE, está realizando testes em duas usinas que usam essa tecnologia para quantificar os impactos na granulometria, umidade, Pol e cinzas no bagaço final, além de avaliar os teores de álcalis, cloro e enxofre nesse bagaço.

Um balanço energético será realizado com os dados finais para estimar os custos energéticos e econômicos no processo como um todo. Se os resultados forem positivos será possível ampliar a queima de palha nas caldeiras sem os problemas de corrosão e depósitos encontrados hoje. Os outros impactos negativos podem também ser minimizados com o uso adequado de tecnologias já existentes como um preparo mais pesado, camisas de alta drenagem, melhor tratamento do caldo, uso de modelos de evaporadores menos suscetíveis a incrustações, uso de materiais mais resistentes a abrasão, entre outros.

Um lado bom e muito importante da colheita mecanizada de cana crua é que temos a disponibilidade de mais fibra na usina, o que permite um aumento da geração de energia elétrica excedente, algo em torno de 750 kWh por tonelada de palha, que pode se tornar um benefício econômico considerável se contrapondo aos problemas descritos acima.

Esses impactos negativos das impurezas acrescidas na cana podem ser reduzidos pela instalação e uso de um Sistema de Limpeza a Seco na usina e, se demonstrada a viabilidade da lavagem da palha e sua entrada no último terno da moenda, a usina ficaria no melhor dos mundos com um aumento significativo da fibra na usina e com seus efeitos negativos atenuados, possibilitando um aumento considerável na produção de eletricidade excedente, inclusive com melhoria sensível do fator de capacidade do sistema de geração e obtenção de melhores contratos de venda no Mercado Livre de Energia.

Essa opção ainda não é bem explorada pelas usinas e as modificações que se afiguram no Marco Regulatório do Setor Elétrico brasileiro poderão acrescentar mais vantagens para o uso da palha, como melhores condições para despacho de energia, aumento de geração no horário de ponta e outros que precisarão ser cuidadosamente considerados nas futuras vendas de energia pelas usinas.

Uma visão de futuro de uma usina competitiva incluiria o uso máximo da matéria prima (açúcares e fibras), dos efluentes e resíduos, para adicionar valor à cadeia produtiva. Além disso, teria uma grande flexibilidade em variar as produções de açúcar, etanol e bioeletricidade de forma significativa e rápida em resposta às variações de mercado desses três produtos principais, permitindo uma maximização dos ganhos financeiros.

A extensão de safra precisa continuar a ser explorada em suas várias opções, nem que seja só para aumentar o fator de capacidade do sistema de geração de bioeletricidade. Esse é, sem dúvida, o produto menos conhecido e valorizado pelas usinas, mas os esforços do governo para atingir as metas prometidas no Acordo de Paris (COP 21) vão necessitar dessa opção de energia renovável. Principalmente para ajudar a estabilizar a rede nacional de energia elétrica que, cada vez mais, recebe energias intermitentes como a eólica e solar, fornecendo opções renováveis de energia de base e de reserva.


*Artigo originalmente publicado na Revista Opiniões, edição de julho/setembro de 2017.
Manoel Regis Lima Verde Leal - Pesquisador do NIPE da Unicamp